Peço desculpas de ser o sobrevivente Não por longo tempo, é claro Tranquilizem-se Mas devo confessar, reconhecer Que sou sobrevivente Se para vocês é triste e cômico Ficarem sentados na plateia Quando o espetáculo acaba E fecha-se o teatro Mais triste e grotesco É permanecer no palco Ator rúmico e sem papel Quando o público já virou as costas E somente as baratas circulam No meio do farelo Reparem que não tenho culpa Nada fiz para ser sobrevivente Foi isso que aconteceu Tornei tornaram-me sobrevivente Se se admiram de eu estar vivo Esclareço que estou sobrevivo Viver propriamente não vivi Se não em projetos Pensando no calendário do próximo ano Jamais percebi estar vivendo E me pus a um canto A espera contraditória e simplesmente De chegar a hora de também viver Não chegou Digo que não porque tudo foram ensaios Tudo foram testes e ilustrações A verdadeira vida sorria longe e indecifrável Recolhi-me cada vez mais ao meu útero À minha ilha, à minha casa, à minha concha E agora sou o sobrevivente Sobrevivente incomoda mais que fantasma Sei disso porque incomodo a mim mesmo E o reflexo é uma prova feroz Mas por mais que me esconda Projeto-me, devolvo-me e provoco-me Não adianta ameaçar-me Porque volto sempre Todas as manhãs eu volto Com a exatidão de um carteiro Que distribui más notícias O dia todo é dia de verificar meu fenômeno Estou aonde não estão minhas raízes Num caminho onde sobrei Insistente, reiterado, aflitivo sobrevivente De uma vida que juro por Deus e o Diabo Ainda não vivi Cumpre a vocês reconhecer-me esta qualidade De ser o único sobrevivente, entendem? O único e o último de um grupo muito antigo No qual não há memórias nas calçadas Nem nos vídeos Sou o único a permanecer A dormir A jantar A urinar A tropeçar E até mesmo a sorrir Em rápidas ocasiões como esta Em que estou sorrindo, entendem? Sorrindo, hahaha, eu estou sorrindo agora Entendem?