Porque nasceste, vives Porque vivias cresceste Porque cresceste tiveste A sorte que não sabias Porque estudaste aprendeste As coisas de se saber E outras inúteis de sobra As coisas de se esquecer As coisas de se esquecer Porque cumpriste fizeste O que te mandaram fazer Os padres o pai a mãe O professor o mais velho O sargento o comandante O senhorio a porteira O ministro o governante O cobrador o pedreiro Esteja cá na terça-feira O bancário o carpinteiro O homem do gás da luz Da água do pão do leite E acabaste cumprindo Cumprindo tudo a preceito Encomendaste gravatas Fatos novos e sapatos Dedicaste-te ao chinquilho Talvez ao king Fizeste um filho e outro filho Nas horas livres, às vezes Em havendo futebol Sentiste-te homem de tasca Sentiste que eras uma besta Mas segunda-feira cedo Bem cedo bem matinal Te achavas de novo pronto Partindo para o mesmo emprego Comprando o mesmo jornal E sempre todos os dias Cobiçaste a secretária Do teu chefe o sr. Sousa Para à noite pernas moídas Tomares o trinta e sete O carrinho ou a bicicleta E regressando cansado Do barulho e da ausência Sentires-te reencontrado Da solidão na indolência De um canapé recostado Pijama e televisão Aquecedor e decência Tudo muito bem ligado Tudo muito bem sentado Em conforto e concordância Em conforto e anuência Nas férias grandes redecoraste-te Bizarro na concepção E arriscaste um figurino Foste às compras de calção E sorriste aos teus parceiros De barraquinha na praia E à senhoria vizinha Que nunca tirou a saia Calculem só os senhores Agosto inteiro com saia Aturaste a pequenada Brigas birras fraldas caca Apreciaste o traseiro Da amiga do teu amigo Rechonchudinha mulata -Já é preciso ter lata! Viraste a cara em decoro Não vão os putos ver isto Espalhaste óleo pelas espaldas Enquanto a tua mulher Um pouco desconfiada Desabrida e despeitada Te exigiu -Ó, Silva, tu muda as fraldas Depois à noite porreiro Caminhaste na avenida Muito fresco e prazenteiro Com a pança bem comida Às vezes de um frango inteiro Que não és homem dos fracos Dos fracos não reza a história E o silva é alguém na vida Homem de bem de memória Contabilista da firma Tal e tal rua da glória Sempre que quiser já sabe É uma casa às suas ordens E depois pelo caminho Regressas gritas dás ordens Recuas gritas dás ordens E ameaças o outro Que guinou para este lado Se calhar querias coitado E o camião chateado De se ver ultrapassado Regressas mais bronzeado Mais gordo talvez mais magro Mais velho um mês e quem sabe Mais cansado que à partida Regressas ao rame rame Enquanto suspirarás Todo o ano por um mês Todo o mês por outra vida Toda a vida por viver Algo que te valha a pena Ou então tu já nem sentes E mentes-te enquanto sentes E mentes e já não sentes E já não sentes mas mentes Ano a ano te esfolharam Te roubaram prestações Letras fantasmas viagens Cromos selos colecções Hálito fresco e saudável Graxa sabão brilhantina Mudaste a cor do salão De azul para verde marinho Do verde para um branquinho E enfim para um castanho O que é que achas mais clarinho E ao fim de tanto trocares Baralhares e confundires Acabas por rebentar Evitando pelo menos Teres enfim de destruir Tudo o que creste ser belo Ser lindo ser valioso Acabaste confundindo Viver com reeducar-te Passaste o tempo calcando O que podias ter sido tu Nu inteiro e pessoal Pois que assim afinal Foste um entre milhões Que de morte natural Tem uma cruz lega uns tostões E cai podre numa cova Em funeral Não te ficou nem um gesto Que não façam mais milhares Não te ficou nem um risco Um grito para espalhares Não te ficou nem uma sobra Uma intenção uma raiva Isto é caso pra dizer Parvo incapaz e castrado Rastejante e tão honrado Foste um escravo do dever Um pobre mais um na selva Repousa em paz bom rapaz