Jamila Mafra

O Bêbado

Jamila Mafra


É
Hoje é mais daqueles dias
Em que eu ardentemente desejaria
Nesse mundo não ser nascida;
Ter outra vida,
Num lugar melhor, Sem ser machucada nem ferida.

Hoje
Eu me sinto um bêbado caminhando
Sem rumo pelas esquinas,
Fedendo à cachaça
E sem alegria.

Hoje é mais um daqueles dias
Em que eu preferiria nem estar viva,
Hoje eu queria ter outra realidade
E esquecer que fui pobre e doente na puberdade.

Hoje eu me sinto
Um mendigo ignorado
Que sai por aí pedindo esmola
No semáforo ou de porta em porta.

Hoje eu me sinto
Hiroshima e Nagasaki
Dez segundos depois
Das explosões das bombas nucleares.

Me sinto a criança do Timor Leste
Miserável e esquecida
Morando sozinha
No barraco de palafitas.

Hoje eu me sinto o viciado desesperado
Sem dinheiro pra comprar a droga,
Me sinto o estudante revoltado
Sem vontade de ir à escola.

Eu me sinto um favelado
Jogado no corrredor
De um hospital público brasileiro
Implorando por um atendimento.

Hoje eu me sinto a lua
Tão admirada e tão linda
Mas está sempre sozinha
Naquela escuridão vazia.

Hoje a luz do sol
E o riso de alguns me incomodam,
E tudo isso porque
Hoje eu me sinto um prisioneiro judeu
À caminho do campo de concentração
Desejando naquela hora ser um cão.

Hoje eu me sinto Freud
Tentando curar a loucura
De quem ele já tem certeza
Que nunca mais vai ter cura.

Às vezes a gente come
O pão que o Diabo amassou sem fermento,
Pois tenho certeza
Que de Deus essa desgraça sem graça não veio;
Casa caindo aos pedaços;dença e desemprego
Do Ser Divino não provém
Do tridente do mal é que vem.

E tudo isso porque
A raça humana não presta,
Nunca prestou
E nunca vai prestar!
Eu me sinto um árabe preso
Pelo exército americano em Bagdá.

Eu me sinto o bandido
Tentando fugir da polícia
No beco sem saída.

Eu me sinto a tartaruga iludida
Competindo na corrida
Contra os cavalos mais velozes
Acreditando que um dia vai chegar primeiro e ter sorte.

Eu me sinto um leproso
Em plena Idade Média
Definhando sem esperança de cura
No período das trevas.

Eu me sinto o milionário
Que de repente ficou pobre
Depois da queda da bolsa de Nova York
Na crise de 1929.

Eu me sinto a água podre do rio Ganges
Sendo obrigada a suportar por alheia ignorância
Cádaveres fedorentos dia e noite.

Eu me sinto um funcionário do INSS
Sofrendo um assalto
Em pleno dia de greve.

Eu me sinto a mosca
Morrendo aos poucos sozinha
Intoxicada pelo inceticida.

Eu me sinto a velha solteirona
Que passou a vida toda querendo alguém
Mas vai morrer sozinha sem ninguém,
Eu me sinto o vírus da AIDS
Completamente destruído
Por um vírus pior e inimigo.

Eu me sinto a menina de treze anos
Voltando do ginicologista
Segurando na mão a receita
De Metronidazol, Dermacyd e Tetracilcina.
Eu me sinto o Bill Gates sem dinheiro
E o candidato que nunca será eleito!

Hoje eu me sinto
O ator que nunca vai ganhar o Oscar,
E o viajante no caminho sem volta.

Eu me sinto eu mesmo
Nos tantos momentos que passaram
Nos quais fui tão humilhada na minha vida
Por não ter nascido rica.

Hoje eu me sinto todo o tempo que vazio passou
Sem ter acontecido nada de bom,
Eu me sinto a minha mãe
Pedindo o divórcio pro meu pai
Pelos 25 anos de infelicidade,
Exatamente a minha idade!
Exatamente a minha idade!

Eu me sinto o solo do sertão árido brasileiro
Recebendo de repente a furiosa onda de um Tsunami,
Me sinto o pobre que sonhou que ganhou na loteria
Mas acordou com as mãos vazias.

Pra falar a verdade
Hoje é mais um daqueles dias
Em que eu desejaria
Nesse mundo não ser nascida.

Pra falar a verdade
Hoje eu me sinto um bêbado
Sem destino, sem futuro, batendo a cara no muro
Caminhando pelas esquinas
Fedendo à cachaça e sem alegria.