Quando de noite transito No meu gauderiar andejo, Me paleteia o desejo De encontrar-te, duende amigo, Pois sei que trazes contigo, Negrinho esmirrado e feio, O Rio Grande em pastoreio No sinuelo do passado, E que ali, no descampado Que a luz da vela clareia, O teu vulto esguio, bombeia, Como Deus de rito estranho, A gauchada de antanho Que se perdeu na peleia! Juntos iremos lembrar Aquele maula estancieiro, Que ao botar num formigueiro O teu corpo de criança, Cravou bem fundo uma lança No próprio ser do rincão; Trazer a recordação, Aquela velha tropilha, Que do topo da coxilha Esparramou-se a lo léu, Para juntar-se no céu Contigo e Nossa Senhora, E hoje cruza, noite a fora, No meio dum fogaréu! Hás de contar-me o que viste Na tua ronda infinita, Desde a povoação jesuíta Ao reduto Guaiacurú, Quando Sepé Tiaraju Morrendo de lança em punho, Dava um guasca testemunho Da fibra continentina, E quando, nesta campina, O velho pendão farrapo Cruzava altaneiro e guapo Como uma benção divina! Dizem que trazes por diante Dos fletes que pastorejas, Assombrações malfazejas Das campanhas do JARAU, Repontas o fogo mau, Do andarengo BOITATÁ, E vagando, ao Deus dará, Nessa ronda de amargura, Vives na eterna procura, Pelas canchas e rodeios, De prendas, trastes e arreios Extraviados na planura! Tu conheces os segredos De ranchos e cemitérios Onde paisanos gaudérios Assinalaram passagem, Revives cada paragem Numa evocação singela, Por entre tocos de vela De humildes promessas pagas Onde o S das adagas Fazia o papel de cruz, - E onde num raio de luz, Brilhava sempre a velinha, Invocando tu'a madrinha A Santa Mãe de Jesus! Presenciaste o velho drama Do gaúcho em formação, Quando este imenso rincão Era um selvagem deserto, Tudo céu e campo aberto E onde Deus Nosso Senhor Pós o guasca peleador, De lança e de boleadeira E mandou fazer fronteira Onde quisesse, a lo largo, Dando o pingo, o mate-amargo E a china pra companheira! Por tudo isso é que sofro Quando altas horas despontas Entre os fletes que repontas Num barbaresco tropel, Lembrando o dono cruel Que num gesto asselvajado Te fez cumprir este fado De andar penando no ermo, Esperando sempre o termo, Que tarda tanto em chegar, E onde haveremos de estar, Enquadrilhados a grito Diante do Deus infinito Que vai por fim nos julgar! E assim como tu, Negrinho, Que um dia foste espancado E por fim martirizado Num formigueiro do pago, O meu peito de índio vago Também sofreu igual sorte, E hoje vagueia, sem norte, Sem fugir, por mais que ande, Deste formigueiro grande Onde costumes malditos Tentam matar aos pouquitos As tradições do RIO GRANDE!