Sérgio Godinho

Fotos do Fogo

Sérgio Godinho


Chega-te a mim 
mais perto da lareira 
vou-te contar 
a história verdadeira 

A guerra deu na tv 
foi na retrospectiva 
corpo dormente em carne viva 
revi p´ra mim o cheio aceso 
dos sítios tão remotos 
e do corpo ileso 
vou-te mostrar as fotos 
olha o meu corpo ileso 

Olha esta foto, eu aqui 
era novo e inocente 
"às suas ordens, meu tenente!" 
E assim me vi no breu do mato 
altivo e folgazão 
ou para ser mais exacto 
saudoso de outro chão 
não se vê no retrato 

Chega-te a mim 
mais perto da lareira 
vou-te contar 
a história verdadeira 

Nesta outra foto, é manhã 
olha o nosso sorriso 
noite acabou sem ser preciso 
sair dos sonhos de outras camas 
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas 
estás são e salvo e logo 
"viver é bom", proclamas 

Eu nesta, não fiquei bem 
estou a olhar para o lado 
tinham-me dito: eh soldado! 
É dia de incendiar aldeias 
baralha e volta a dar 
o que tiveres de ideias 
e tudo o que arder, queimar! no fogo assim te estreias 

Chega-te a mim 
mais perto da lareira 
vou-te contar 
a história verdadeira 

Nesta outra foto, não vou 
dar descanso aos teus olhos 
não se distinguem os detalhes 
mas nota o meu olhar, cintila 
atrás da cor do sangue 
vou seguindo em fila 
e atrás da cor do sangue 
soldado não vacila 

O meu baptismo de fogo 
não se vê nestas fotos 
tudo tremeu e os terremotos 
costumam desfocar as formas 
matamos, chacinamos 
violamos, oh, mas 
será que não violamos 
as ordens e as normas? 

Chega-te a mim 
mais perto da lareira 
vou-te contar 
a história verdadeira 

Álbum das fotos fechado 
volto a ser quem não era 
como a memória, a primavera 
rebenta em flores impensadas 
num livro as amassamos 
logo após cortadas 
já foi há muitos anos 
e ainda as mãos geladas 

Chega-te a mim 
mais perto da lareira 
vou-te contar 
a história verdadeira 
quando a recordo 
sei que quase logo acordo 
a morte dorme parada 
nesta morada