Sérgio Godinho

Fado Gago

Sérgio Godinho


Fado triste 
fado negro das vielas 
onde, agora é que são elas 
encomendaram-me este fado 
"...- Mas só se for falado..." 
Fado falado? 
Pagam bem e dão trocado 
o fado é pago! 
Mas eu que sou gago 
só consigo balbuciar... 
(melhor cantar:) 

Mãos caprichosas 
que sebosas 
mimoseiam a guitarra 
mimoseando 
o fado nefando 
que se entranha 
nas vielas 
mãos tagarelas 
indecentes 
mãos tão juntas, tão ardentes 
os dedos quentes 
insolentes 
só se amainam na guitarra 

Espera aí 
já percebi 
que entoando 
mesmo falando, mesmo falando 
se falar como que em verso 
não gaguejo e até converso 
(como as tais mãos na guitarra...) 

Eram assim essas mãos 
mãos de ferro e mãos de farra 
desse Chico de má-vida 
que (p´ra ser fiel à história) 
andava na boa-vida 
com a Glória 
e está bom de ver 
que o mulherio de Alfama 
que é todo de alta linhagem 
achava aquilo suspeito: vem de viagem 
esse Chico marinheiro, todo feito 
e vá de pendurar a âncora 
na varanda da pequena 
(Estão a ver a cena...) 

E está bom de imaginar 
(mesmo sem ver) 
que dentro desse lugar 
o que tinha a mercearia mesmo em 
frente 
tudo era transparente 
o Chico, quando dormia 
era marinheiro em terra 
era a paz depois da guerra, a sua Glória 
por isso dormiam juntos 
sem divisória 

Mãos muito sábias 
tantas lábias 
nas linhas das quatro palmas 
são duas almas 
irmanadas 
pelas sinas da paixão 
corpo na mão 
mão que esvoaça 
e amordaça 
a sensatez 
e cada vez 
que o fado canta 
esqueço tanta 
da gaguez 

Mas um dia - há sempre um dia 
(Moeda ao ar!) 
a cara e a coroa 
viram a sorte mudar 
vamos lá explicar 

É que o Chico, c´a memória 
de ter amor de mulher 
vez à vez, em cada porto 
não cuidou de amar a Glória 
foi-se à fruta no pomar 
deixou a planta no horto 
ou seja: 
resolveu catrafilar 
toda a mulher que passava 
na rua por onde a Glória - e aqui vai 
mas desta história - 
espreitava 
Ah! Que a Glória é mulher tesa... 
quando viu o Chico 
rua abaixo, rua acima 
atracado a uma ´pirua´ 
uma garina 
de resto bem conhecida 
daquelas que faz p´la vida 
e ela toda pimpante 
e ele todo galante 

Veio-lhe à boca o ciume 
e a navalha foi lume 
brilhando de raiva 
todo este bairro, que saiba 
que os dois que ali vão 
vão ter de morrer 
ai, vai correr muito sangue 
eu esfolo, estrafego 
eu pego nos dois 
atiro as carcaças ao rio 
e nem olho p´ra trás 
tudo isto faz 
alarido 
e o Chico já ferido 
só tenta dizer: 
- Glória, que fazes? 
Que morro sem quase 
ter tempo de me arrepender 
dá-me uma oportunidade 
e nesta cidade 
eu prometo ser teu 
eu quero morrer no mar alto 
e depois ir p´ró céu 

Mãos homicidas 
amanticidas 
assim eram se não fosse 
o olhar doce 
por um instante 
desse homem tão inconstante 
mãos que da Glória 
têm o nome 
e em seu nome vão amar 
eu fico gago 
com o afago 
que essas mãos souberam dar 

E o afagar dessas mãos 
já desenha na pele 
a promessa futura 
- Jura, vá jura que és 
todo meu ´té ao fim 
todo, todo de mim 
- Glória, vou desembarcar 
dessa vida em que andava 
à deriva no amor 
- Chico, os meus braços de mar 
dão-te abrigo e calor 

E assim acaba esta história 
o Chico e a Glória 
está bom de se ver 
ambos com vidas atrás 
vão atrás de uma vida 
em que é tudo viver 
quem fala assim 
não é gago 
(não quero voltar a um assunto 
encerrado) 
mas... 
digam-me lá 
se eu não sou gago 
e canto o fado