Sérgio Godinho

Alice No País Dos Matraquilhos

Sérgio Godinho


Mãe fora, (em que avenida?) 
olhos que a perseguem, pagam, comem 
pai dentro, lambendo a ferida 
com que o desemprego marca um homem 
e o irmão na caserna 
puxando às armas brilhos 
e Alice no café 
habitante do país dos matraquilhos 

Na classe dos repetentes 
hoje vai haver mais uma falta 
alice cerra os dentes 
vendo a bola que no ar ressalta 
quer lá saber do exame 
quer lá saber da escola 
aguenta no arame 
matraquilho nunca cai ao ir à bola 

Alice no país dos matraquilhos é mais 
do que no bairro onde vive, tem-te-não-cais 

Há também Leonor 
libertada da prisão há meses 
dizem que é por amor 
que olha tanto por Alice às vezes 
pousa-lhe a mão na cara 
protege-a de sarilhos 
Alice nem repara 
viajou para o país dos matraquilhos 

E o irmão na caserna 
cambaleia entre a cerveja e a passa 
tem o sargento à perna 
o tal que compara a guerra à caça 
faz tempo que descobre 
que é um matraquilho mais 
soldadinho de cobre 
matraquilho no país dos generais 
Alice no país dos matraquilhos é mais 
do que no bairro onde vive, tem-te-não-cais 

Quando se cai na lama 
ninguém pára pra nos levantar 
Alice! o pai reclama 
a mãe não veio pra jantar 
e os insultos, noite fora 
desvia-os em chorrilhos 
Alice nunca chora 
adormece no país dos matraquilhos 

E a mãe no "bar do amor" 
passa as horas na conversa mole 
espera o seu protector 
e que o seu corpo a ele enfim se cole 
não é que não recorde 
os que deixou em casa 
Mas eis que chega o Ford 
e dentro vem o seu pavão de anel na asa 

Alice no país dos matraquilhos é mais 
do que no bairro onde vive, tem-te-não-cais 

Entra então no café 
um rapaz de capacete em punho 
fica-se ali de pé 
escreve num papel um gatafunho 
e a Alice lê, surpresa 
frases que são rastilhos 
"Como vai Sua Alteza, 
a rainha do país dos matraquilhos?" 

"E tu ainda és o rei? 
Será que voltastes em meu auxilio?" 
"A bem dizer, já não sei 
há tantos anos que ando no exílio..." 
"Vamos a um desafio?" 
"Atira tu primeiro" 
"A vida está por um fio 
para quem é deste bairro prisioneiro" 

O café que ali houve 
é uma loja com ares de modernice 
e nunca mais ninguém soube 
(a não ser a Leonor) da Alice 
"Aqui vai, Leonor 
a foto dos meus dois filhos 
se reparares melhor 
têm pinta assim, sei lá, de matraquilhos" 

Alice no país dos matraquilhos é mais