Então, Cocão, aí, não leva a mal, não, mas, aí, vai fazer um tempo que eu tô querendo fazer essa pergunta pra você, aí Fala aí Tem como você falar daquele acidente lá? Eu sei que é meio chato Não, é não É É nada Embaçado Quer saber, a gente fala, né, mano? Aham Vamo lá Foi dia, ó, lembro até Eu lembro que nem hoje, ó Vixe, até arrepia, ó Vixe Dia 14 de outubro de 94 Aham Eu tava morando no Hebron, tá ligado? Só Aí o Opala tava O Opala tava na oficina do Di, lá, a gente ia fazer um barato a noite, tá ligado? Aham A gente ia se trombar em Pinheiros, não sei se você se lembra disso aí Pode crer Porque você Cê ia com o Kleber direto pra Pinheiros, você ia direto E nóis, tava eu, ia eu, o Brown, o Blue, pra Zona Sul Naquela noite eu acordei e não sabia onde estava Pensei que era sonho, o pesadelo apenas começava Aquela gente vestida de branco Parecia com o céu, mas o céu é lugar de santo Os caras me perguntando: E aí, mano, cê tá legal? Cheiro de éter no ar nunca é bom sinal Dor de cabeça, tontura Aquela sala rodava estilo brisa de droga, loucura Sangue na roupa rasgada Fio de sutura me costura, porra, a gente não vale nada Do que adianta você ter o que quer Sucesso, dinheiro, mulher, beijando seu pé? E num piscar de olhos, é foda Você é furado igual peneira ou sem valor numa cadeira de roda! (O que que eu tô fazendo aqui?) (Não quero admitir) (Agora é tarde, tarde, tarde) (Lamento) Meus parceiros me contaram Cena após cena, passo a passo, o que presenciaram! Mano, foi um arregaço, na Marginal Você capotou, teve até uma vítima fatal Da Zona Sul e tal, sentido ao Centro, 1h da manhã Lembrei daquele momento Vários Opala, mó carreata E eu logo atrás da primeira Barca Diplomata Tô dirigindo, ali no volante Opala cinza escuro, 2Pac no alto-falante Por um instante tive um mal-pressentimento Mas não liguei, não dei conta, não tava atento! (Cadê o corpo, mano?) (Mano, pega o celular, que embaçou, mano) (Faz um esforço, mano, o barato foi louco) (Puta que o pariu! O cara subiu a uns dois metros do chão) (Meu Deus do céu! Chama a ambulância, caralho!) (Embaçou) Que merda, um cara novo morreu Fatalidade é uma imprudência, divergência, fudeu Ele deixou uma mulher que esperava um filho Um evangélico que nem conheceu o filho Um suspiro, perdi a calma Vi uma faca atravessando a minha alma Olhei no espelho e vi um homem chorar A mídia, a justiça, querendo me fuzilar Virei notícia, primeira página Um paparazzi focalizou a minha lágrima Um repórter da Globo me insultou Me chamava de assassino, aquilo inflamou Tumultuou, nunca vi tanto carniceiro Me crucificaram, me julgaram no país inteiro Pena de morte, se tiver sorte Cadeira elétrica, se fosse América do Norte Opinião pública influenciada Era um réu sem direito a mais nada Meu mundo tinha desabado Na lei de Deus fui julgado, na lei do homem condenado! (Então, Kleber, o cara morreu, mano) É, então, agora é daqui pra frente, Cocão Não tem mais jeito, tá ligado? Não se abala, não, tem que ficar firme (É) Nóis tá junto aí! Dois anos e pouco de audiência Pra mim já era o início da minha penitência Aquele prédio no Fórum é mó tortura Ali na frente sempre para várias viatura O movimento é intenso o tempo inteiro Parece o trânsito, o tráfego, um formigueiro Advogado pra cima, pra baixo Ganhando dinheiro com mais um réu, eu acho Registrei um cara algemado entrando De cabeça baixa, me parecia um cara branco Esperando a vez de ser solicitado Julgado, talvez até se, pá, libertado Escoltado, vários gambé Esse daí não deve ser um preso qualquer Com a mão pra trás olhando pra parede Fui beber água, me deu mó sede Uma ligação com urgência Meu advogado, com o resultado da sentença O celular tava falhando! (Hã? Alô?) (Não dá pra escutar, mas eu tô indo pra aí, falou? Tô chegando) É, irmão, fui de metrô Aquele frio na espinha que eu tinha então voltou A cada estação ele aumentava Eu não sabia se descia ou s'eu continuava A procura de uma distração, olhava o vagão lotado, a movimentação Aquele povo indo pra algum lugar Trabalhar, estudar, passear, roubar, sei lá Vi uma mina bonita, discreta Pinta de modelo, corpo de atleta Eu vi um cara lendo, concentrado Naipe de estudante, daqueles filho dedicado Vi uma tia crente, em pé, cansada De cor escura, com a pele enrugada Ela me fez lembrar Parece a mãe da vítima, como será que ela deve tá? Cheguei no prédio da Ipiranga com a São João Respirei fundo, subi a manga do meu camisão Decisão, eu tô trêmulo Mó responsa, não, não entendo Muita calma, sempre é preciso Proibido fumar, li o aviso Um porteiro tiozinho lembra meu pai (Que andar?) (Qual andar que cê vai?) No décimo, me sinto péssimo A balança fez questão de mais um acréscimo Elevador quebrado Tem dia que é melhor não acordar, que dá tudo errado Fui pela escada contando cada degrau Cada passada chegava o juízo final Tive a sensação de alguém me olhando Parecia me seguir, tava ali me gorando Senti um calafrio Recordei daquela cena que você não viu Do capote, de um grito forte, dos holofote Um vacilo seu (já era), resulta em morte Daquela Kombi velha, partida ao meio Daquela hora que eu tentei pisar no freio Andar por andar, onde eu tô não importa Lembra da vítima? Cheguei na porta Então, Smurf, é isso aí, mano. Deu pr'ocê entender? É embaçado, hein, Cocão? E então Que fita, hein? É o seguinte, aí, passou, aí, eu acho que uns 3 anos, tá ligado? 3, 4 anos, aí, de corre pra lá e pra cá Pode crê Tentando se ajus... Se acertar, aí, com a justiça, tá ligado? Pagando o que eu devia. Graças a Deus, aí, ó. Hoje tô firmão, não devo mais nada pra ninguém Aham Me acertei com Deus, aí Certo Principalmente com a família lá, tá ligado? Com a justiça também. E é o seguinte, né? A vida tem que continuar, tá ligado? É Porque não pode parar