Martinho da Vila

Lisboa menina e moça

Martinho da Vila


No castelo 
Ponho o cotovelo 
Em Alfama 
Descansa o olha 
E assim desfaz-se o novelo 
De azul e mar 
À ribeira encosto a cabeça 
Almofada 
Na cama do Tejo 
Com lençóis bordados à pressa 
Na cambraia de um beijo 

Lisboa menina moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura 
Teus seios são colinas, varina 
Pregão que me traz a porta, ternura 
Cidade a ponto-luz bordada
Toalha a beira-mar estendida 
Lisboa menina e moça, amada 
Cidade mulher da minha vida 

No terreiro eu passo por ti 
Mas da graça eu vejo-te nua 
Quando um pombo te olha, sorri
És mulher da rua 
E no bairro mais alto do sonho 
Ponho fado que soube inventar 
Aguardente de vida e medronho 
Que me faz cantar 

Lisboa menina e moça, menina 
Da luz que meus olhos vêem tão pura 
Teus seios são colinas, varina 
Pregão que me traz a porta, ternura 
Lisboa do meu amor deitada 
Cidade por minhas mãos despida 
Lisboa menina e moça, amada 
Cidade mulher da minha vida 

Na praça da Figueira 
Ou no jardim da estrela 
Num fogareiro aceso é que ela arde 
Ao canto do outono 
À esquina do inverno 
O homem das castanhas é eterno
Não tem eira nem beira nem guarida 
E apregoa como um desafio 
É um cartucho pardo a sua vida 
E se não mata a fome mata o frio

Um carro que se empurra 
Um chapéu esburacado 
No peito uma castanha que não arde 
Cai a chuva nos olhos 
E te um ar cansado 
O homem que apregoa ao fim da tarde 
Ao pé de um candeeiro acaba o dia 
Voz rouca como o trapo da pobreza 
Apregoa pedaços de alegria 
E à noite vai dormir com a tristeza 

Quem quer quentes e boas quentinhas 
A estalarem cinzentas, na brasa?
Quem quer quentes e boas quentinhas ?
Quem compra leva mais amor pra casa 

A mágoa que transporta 
É miséria ambulante 
Passeia pela cidade o dia inteiro 
É como se empurrasse o outono adiante 
É como se empurrasse o nevoeiro 
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas ?
Nunca ninguém pensou que ali ao lado 
Ardem no fogareiro dores tamanhas