Riachão tava cantando Na cidade do assu Quando apareceu um negro Da espécie de urubu Tinha camisa de solo A calça de couro cru Beiços grossos e virados Como a sola de um chinelo Um olho muito encarnado O outro bastante amarelo Esse chamou riachão Para ir cantar martelo Riachão arrespondeu Não canto com nego desconhecido! Por que pode ser escravo E ande por aqui fugido Isso é dar calda a nambu E só entra nego incherido Eu sou livre como o vento A minha linhagem é nobre Com muitos mais ilustrados Que o Sol no mundo cobre Nasci dentro da grandeza Não sai da raça pobre Você nega por que quer Está conhecido demais Diga se está fugido Diga quanto tempo faz? Se você não for cativo Obra desmente sinais Seja rico seja escravo Eu quero cantar martelo Afine sua viola! Vamo entra num duelo Só com minha presença O senhor tá ficando amarelo Vejo um vulto tão pequeno Que nem posso enxergar Parece que não precisa Nem a viola afinar Pela ramagem da árvore Vê-se os fruto que ela dá Riachão, isto são frases De homem muito atrasado Porque são vistos fenômenos Que na terra têm se dado Uma cobra pequenina Mata um boi agigantado Meu riacho pela seca Dá cheias descomunais Na correnteza das águas Descem grandes animais Jiboias, sucurujubas E monstruosos jaguais O jaguar rende-me culto A serpente aos meus pés morre Quando chega minha ira Só um poder o socorre Digo ao rio: Pare ai A água para e não corre Você não é Josué Que mandou o Sol parar Este parou três dias Para a guerra se acabar Nem Moisés com a sua vara Fez a água do mar secar Faço tudo que quiser Minha força é sem limite Os feitos por mim obrados Não vejo homem que os cite Eu determino uma coisa Não ha força que evite Salomão também fazia O que quera fazer Por meio de mágica e química Quis novamente nascer Em vez do nascimento Ele conseguiu morrer Salomão facilitou Confiado na ciência Encaminhou tudo bem Mas faltou-lhe a paciência Se não fosse esse erro Tinha outra existência Eu necessito saber Onde é seu natural Porque não sei se o senhor Tem nascimento legal De qual nação é que vem Se procede bem ou mal Você vem interrogar-me Eu lhe interrogo também Diga pra onde vai E de que parte é que vem Se é solteiro ou casado Que trabalho você tem? Não tenho superior Sou filho da liberdade E não conto a minha vida Pois não há necessidade Eu não sou foragido Nem você é autoridade Eu preciso advertir-lhe Fazer-lhe observação Me trate com muito jeito Cante com muita atenção Veja que não se descuide E passe o pé pela mão Eu já canto há muito tempo Já estou muito habilitado Conheço alguma matérias Sou um pouco adiantado Tive estudo quatro anos Me considero letrado Sou professor de matérias Que sábio não as conhece A lei que dito no mundo O próprio rei obedece Meus feitos são conhecidos A fama se estende e cresce Você diz que tem ciência Dê-me uma explicação Se a terra faz movimento De quem é a rotação? Porque é que em 12 horas Há essa transformação? O Sol não é quem se move É fixo em seu lugar A terra está sobre eixos Os eixos a faz rodar Que por essa rotação Faz a luz do Sol faltar Descreva o grande mistério Que entre nós a terra tem De que é formada a chuva? Em que estado ela vem? É criada aqui por perto Ou em algum lugar mas além? Á água em estado líquido Por meio de abaixamento Que há na temperatura E pelo resfriamento Essa água é condensada Ajudada pelo vento A corrente atmosférica Duma montanha elevada Que ajuda a temperatura Forma nuvem condensada Do vento movendo as nuvens É disso a chuva formada Que essa chuva depois Que toda terra ensopar Por meio de evaporação Torna ao espaço voltar Reproduzindo o processo Que acabei de lhe tratar O senhor conhece bem Este país brasileiro? Ora, respondeu o negro Eu conheço o estrangeiro Desde o córrego mais pequeno Até o maior ribeiro Por exemplo: O Amazonas Que estrema com o Pará O Pará com o Maranhão Piauí com o Ceará E assim todos mais outros Se alguém duvida é ir lá Esse qualquer um daqui Pretendendo viajar Até o Rio de Janeiro E não querendo ir por mar Eu lhe ensino o caminho Ele vai sem se vexar Como faz essa viagem? Onde encontra o caminho? Lugar duma só morada Sem haver mais um vizinho Tanto que em muitos lugares Não anda homem sozinho Pode qualquer um sair Do assu a mossoré Querendo poder passar de caicó Subir pela margem esquerda Do rio seridó Riachão disse consigo Este negro é um danado Este saiu do inferno Pelo demônio mandado E para enganar-me veio Em um negro transformado Disse o negro: Meu amigo Não queira desconfiar Garanto que o senhor Não ouviu bem eu cantar Na altura que eu canto Outro não pode chegar Vá na altura que for (Riachão lhe respondeu) Remexa todos os livros Que o senhor aprendeu Eu não conheço esse ente Que cante mais do que eu Você ficará sabendo O peso dum cantador Quando me vir outra vez Me trate de professor Render-me a obediência Conhecerá o meu valor O senhor diga o seu nome Eu quero lhe conhecer Pois só assim vou dar O valor que merecer Em tudo que você diz Ainda não posso crer Você sabendo quem sou Talvez fique assombrado Superior a você Comigo tem se espantado Os grandes de sua terra Eu tenho subjugado Eu canto há dezoito anos E vinte toco viola Sempre encontro cantador Que só tem fama e parola Quando canta meio dia Cai nos meus pés, no chão rola Eu há muitos anos canto Não vou em toda função Arranco ponta de touro Quebro furor de leão Eu achei esse duro Que para mim tenha ação Mas de hoje em diante O senhor tem de encontrar A força superior Que obrigue a se calar Porque eu boto um cerco Quem vai não pode voltar Manoel, tu és criança Só tens mesmo é pabulagem Veja que fala é fôlego Porém obrar é coragem Juro que de hora em diante Não contarás vantagem Meu pai chamava antônio Seu apelido era rio Duma enxurrada que dava Cobia todo baixio Escavava em tempo de inverno Enchia em tempo de estio Conheci muito seu pai Que vivia de pesca Sua mãe era tão pobre Que vivia dum tear Seu padrinho tomou você E levou-o parar criar Onde morava o senhor Que o meu avô conheceu? Que eu nem me lembro mais Do tempo que ele morreu E você está padecendo Muito mais moço do que eu Eu sei do dia e da hora Que nasceu seu bisavô Chamava-e Ana Mendes A parteira que o pegou Conheci muito o frade E vi quando o batizou Bote sua mascara abaixo Conte a história direito Da forma que você conta Eu não fico satisfeito Como vê-e um objeto Antes daquele ser feito? Seu bisavô se chamava Apolinário canção Era filho dum ferreiro Que o chamavam gavião Uai bisavó, lourença Filha de amaro assunção Mas que idade tem você? Que me faz admirar Conheceu meu bisavô Eu não posso acreditar Assim nestas condições Faz até desconfiar Seu bisavô e avô Foram por mim conhecidos Seu pai, sua mãe e você Antes de serem nascidos Já estavam em minha nota Para serem protegidos Que proteção te você Para proteger alguém? Sua pessoa e os trajes Mostram o que você tem A sua cor e aspeto Esclarecem muito bem Eu protejo você tanto Que o defendi de morrer Você se lembra da onça Que uma vez quis lhe comer? Que apareceu um cachorro E fez a onça correr Me lembro perfeitamente Quando a onça me emboscou Que já marcando o salto Que um cachorro chegou A onça coreu com medo Eu não sei quem me salvou Pois foi este seu criado Que viu a onça embosca-lo Eu chamei por meu cachorro Para da onça livrá-lo Se lembra quando você Ouviu o go canto do galo? Eu me lembro disso tudo Porque assim foi passado Mas que idade tinha eu Quando esse caso foi dado? Eu era tão pequenino Que meu pai teve cuidado Você tinha nove anos Foi caçar um novilhote Se entreteu com umas flores Que tinha lá no serrote A onça foi esperá-lo Para soltar-lhe o bote Riachão disse consigo De onde veio este ente Que de toda a minha vida Conhece perfeitamente? Este será o diabo Que esta figurando gente? O senhor pergunta assim De que parte venho eu Eu venho de onde não vai Pensamento como o seu Eu saí do ideal Primeiro que apareceu Agora acabei de crer Que tu és o inimigo Te transformaste em homem Para vir cantar comigo Mas eu acredito em Deus Não posso correr perigo Inda não te ameacei Nem pretendo ameaça-lo Estou pronto a defendê-lo Se alguém quiser atacá-lo Em minha humilde pessoa Tem um pequeno vassalo Não quero saber de ti Porque tu é o traidor Desobedeceste a Deus Sendo ele o criador Fizeste traição a ele Quanto mais a um pecador Riachão, amas a Deus Sendo mal recompensando Deus fez de Paulo um monarca De Pedro um simples soldado Fez um com tanta saúde Outro cego e aleijado Se Deus fez de Paulo um rei Porque Paulo merecia Se fez de Pedro um soldado Era o que a Pedro cabia Se não fosse necessário O grande Deus não fazia O teu vizinho e parente Enricou sem trabalhar Teu pai trabalhava tanto E nunca pode enricar Não se deitava uma noite Que não deixasse de rezar Meu pai morreu na pobreza Foi fiel ao seu senhor Executou toda ordem Que lhe deu o criador E foi uma das ovelhas Que deu mais gosto ao pastor Arre lá! Lhe disse o negro Você é caso sem jeito Eu com toda paciência Estou-lhe ensinando direito Você vê que está errado Faz que não vê o defeito É muito feliz o homem Que com tudo se consola Posso morrer na pobreza Me acha pedindo esmola Deus me dá para passar Ciência e esta viola O negro olhou riachão Com os olhos de cão danado Riachão gritou: Jesus Homem Deus sacramentado Valha-me a virgem Maria A mãe do verbo encarnado O negro soltou um grito Ali desapareceu Duma catinga de enxofre A casa toda se encheu Os cães uivaram na rua O chão se estremeceu Riachão ficou cismado Com cantor desconhecido Que quando encontrava um Tomava logo sentido O seu primeiro verso Era a Deus oferecido