Meu Verso 1 O meu verso é natural Da Chapada Diamantina. Vem dos zelos de Mãe Lina E das lições de moral. Vem das Minas de cristal Do calumbé e da pá. Da lavanca de cavar Do querer e do despojo. Vem do bamburrar no bojo De cristal a cintilar. 2 Vem d'aridez do carrasco Da estiagem do agreste Do vento que vem do leste De graveto no penhasco. É tão seco como o casco Da cuia de cabaceira. Nem palha que faz esteira Tem a sua sequidão. É seco como o torrão, Como cinza em capoeira. 3 Tem marcas do desamparo E virtude do perdão Poder de superação De um passado ignaro. Vem d'um feliz anteparo Com paz, carinho e amor. Foi de anjo benfeitor, Em formato de mulher, Que com sacrifício e fé Fez um ninho acolhedor. 4 Retrata a fauna e a flora: O nado do mergulhão, O vôo do azulão No despertar da aurora. Vem da figueira que chora, Do gosto de articum. É negro como o anum E brabo como tetéu. Mandaçaia que faz mel De flor de manga comum.. 5 De essência singular, Tem a mistura das cores, Dos perfumes e sabores Que captou do lugar. É doce como araçá E rapadura cerenta. Tem o ardor da pimenta E as cores do jasmim. Tem cheiro de bogarim E efeito de água-benta. 6 Vem da casa de terreiro Pintada de tabatinga Que tem água de moringa E a luz de candeeiro. Vem da pimenta-de-cheiro Pra tempero de pirão Cozinhado em caldeirão Ensopado com verdura. "De comer" com a mistura De arroz com açafrão. 7 Vem da observação Das nuvens beijando a serra, Cheiro de chuva na terra E do ronco de trovão. Começo de plantação De feijão-de-corda e milho. Fumo, de corda, em sarilho No quintal para secar. Do vôo do mangangá E do mugir de novilho... . 8 Do doce de campoteira E gomo de mexerica Água tomada na bica, Café de choculateira. Cantiga de vó rendeira Cochilo com cafuné. Avô cheirando rapé Com ar despreocupado. Menino fotografado Com a máquina de tripé. 9 Da moça trajando chita No festejo de São João. Igreja, reza e rojão, E bandeirola que agita. Do leiloeiro que grita, Pedindo oferta melhor. Da cachaça e trololó, Casamento e batizado. Do mastro sendo enfincado Com vento trazendo pó. 10 Vem das tardes de prazer Com bola de mangabeira Muito jogo e brincadeira Até candeia acender. Do ver a lua nascer No colo quente da vó. Com picada de potó Que, de noite, irrita e coça. De manhã, na velha roça, Plantando feijão no pó. 11 Fez inversa trajetória Como numa regressão Pra trazer da região O que ficou na memória. Vendedor contando história De forma espirituosa De meizinha milagrosa Pra curar qualquer doença Explorando a velha crença Levando besta na prosa. 12 Traz de feira inspiração Mais originalidade: Da banca de brevidade Com paçoca de pilão. Da cigana que lê mão Pra tirar qualquer quebranto. Meninos em contracanto Com tábuas de pirulito Mulher rezando bendito Vendendo imagem de Santo. 13 Trago a minha poesia Das Lavras Diamantinas Onde o cascalho das minas Era de grande valia. O interior da Bahia Me deu o metro e a rima. O resto veio do clima, Do sol, da terra e do ar. Do constante caminhar No garimpo serra acima. 14 Ponho no verso o que via Lá na Fonte do Pau-Louro Nas gramas do quaradouro Uma vasta estamparia. Da bica a água escorria Com mulher enchendo a lata. A branca, a preta e a mulata, Trançando a mesma rodilha Pra andar na velha trilha Sempre arrastando a pracata. 15 Só vi pé de caroá Em terreno pedregoso Com raiz de fedegoso Minha avó fazia chá. O bico do carcará Era igual unha-de-gato. Vi grassar bredo, no mato, Como ervanço e jitirana. Qualquer farinha baiana Era medida no Prato. 16 No brejo, quando menino, Brinquei com fogo-pagou No Cercado de Doutor, Velho Doutor Gasparino. Em lamento matutino, Uma pomba juriti. Na Lagoa, o paturi, Vi nadar entre o capim, E o bate asas sem fim Do pequeno Bem-te-vi. 17 Pro meu verso foi achado Esse interior baiano. Mascate vendendo pano Soltando o palavreado. Feira de sol empinado Onde se vendia puba, Tapioca de Imbaúba, Carne seca de varal. Farinha do Traçadal E maniva da Pituba. 18 Vem do mais belo cenário: Lá da Serra do Carranca, Cuja beleza desbanca Qualquer um receituário. Vem do canto do canário, Pintassilvo e zabelê. Vem da pega e do sofrê Nas flores do mulungu. Vem do tempo do umbu, Do preá,do saruê. 19 Traz ainda a emoção Do mágico deslumbramento Do girar do cata-vento Na casa de Sinhorzão. História de assombração Em noite de lua cheia. Casa de parede-meia Com santo no oratório. Menino de suspensório, Domingo, cavando areia. 20 Sai do enredo do sonho Do fluir do pensamento. É distraído e atento, Inteligente e bisonho. Possui um poder medonho Parece mais deus pagão. Não foge de tentação Tem forma de Ipupiara. Seduz a deusa Iara Ecoa pelo sertão.