João Afonso

Tirano Coração

João Afonso


Saudaste as gotas do Inverno 
espreitaste sonhos pelas frestas 
sentaste-te à sombra do deserto 
à espera que a angústia se vá 

Voltaste a página do livro 
sem vigiar o dormir dela 
voltaste a cheirar a queimada 
dum pinheiral que a chuva lavra 

Tirano, Tirano coração 

Meu amor já foi embora 
com a buzina dos navios 
como é tenro o pão de trigo 
e dura a curva da vida 

Abriste o olhar das colinas 
imaginaste outras venturas 
ouviste o pulsar dos telhados 
numa portada sobre o rio 

E quando o silêncio inunda 
vai repousar sobre estendais 
abre as ombreiras da janela 
ao respirar dos aventais 

E numa noite assim deitado 
senti o cais com o céu estrelado 
revi-me em becos da cidade 
e nos eléctricos, largado 

E há sons cruzados na praça 
mais as conversas de café 
as discussões e as chalaças 
entre dois copos de água pé 

Tirano, Tirano coração 

Já perdi o meu sorriso 
em promessas enganadas 
um tempo que foi perdido 
em águas mudas passadas 

O brilho dos écrans para consolar 
na jarra uma flor por libertar