Hoje o ar que cheira á sangue amanheceu diferente; Não me parece um dia comum, de tiro, velório, felizmente; Eu não ouvi os boatos da noite que passou; Será que ninguém morreu, ninguém matou, ninguém matou; Olha o caderno na mão, tem uma tático ali; Tem segurança pras crianças indo pra escola; Estudar é tão bom quanto á morte não estar aqui; Cadê o mano que trafica perto do portão; Cadê o copo de água mineral; O vestígio das pedras nesse horário sempre tem, só que hoje não; Caranga cinza fico com medo, será que algo vai acontecer; No abaixar dos vidros eu já imagino os tiros; Eu tenho quase certeza que alguém irá morrer; Será que é outro enquadro ou só outro cadáver; Qual que é desses canalhas, por incrível que pareça vieram em paz; Não apertaram o gatilho, não terminou na bala; Essa foi de três pontos e da outro lado que golaço; Quadra lotada, esporte na mente, caixão adiado; A oficina do diabo está ocupada; Nos deram boa escola, um centro recreativo; Conjuntos habitacionais, a nossa gente é sempre lembrada; Parabéns brasil pela campanha contra o álcool, aids, contra as drogas; Recuperação em massa do fundo do posso agora tem sua cota; Não tem ninguém algemado, a pt está descarregada; Tem rango digno no prato, olha o sorriso da tia que passa; A sacola é pesada, o suor escorre pela cara; Mas o semblante é feliz de quem venceu pelo menos hoje; De quem levou comida pra casa; Não tem ninguém de roupa imundo e feridas no corpo passando fome; Não tem ninguém desempregado metendo os canos; Não tem ninguém derrubando ninguém; Nem a de vinte que passou pro iml não mandou ninguém; Pagode, discurso, cerveja na mesa; Descontração por alguns minutos; Cenário de sangue na batida do pandeiro, treta, caixão, defunto; Infelizmente pro demônio hoje não tem velório; O anjo protetor nos protegeu; Nos livrou do atestado de óbito; Nenhuma pedra foi derretida; Nenhuma grama de cocaína foi consumida; Aqui se valoriza a vida, se incentiva; Existe sempre um caminho ou uma alternativa; Que cheiro de carniça vem lá da esquina, deve ter defunto; Ouço o som da sirene, não tenho dúvida; Mais um fulano no túmulo; Até parece que deus está por aqui; Não tem finado nenhum, incomum, sem crack, sem polícia; Não é preciso fugir; E de repente um barulho de despertados me acordou; Infelizmente tudo o que eu vi; Não passou de um sonho que passou; Estou de volta ao inferno; Ao enterro, polícia, crack, tiro, papel; Fechei os olhos e sonhei com a paz; Fechei os olhos e sonhei com o céu. Fechei os olhos e sonhei com o céu; Do inferno eu vi a paz; O sangue lá não escorre pelo chão; Não existe cadáver, não se enterra caixão; Sonhei com o céu, sonhei com o céu; Sonhei com o céu. Tem um corpo se decompondo ali no meio do mato; Entre mosquitos e sangue um pequeno finado; Daqui á pouco cola a mãe e os familiares; Tem uma vela, algumas piadas, alguns populares; As lágrimas demonstram o universo contraditório; Muita tristeza para uns, pra outros alegria, é velório; Esse corpo vem da casa de madeira ou papelão; Com luz roubada, sem conforto, segurança, sem opção; Esse corpo vem da mesa que sempre tem comida quase de cachorro; Que sempre tem migalhas tem tristezas; É outro filho de uma mãe que teve cinco, seis, sete filhos; Que criou alguns no cemitério e outros no presídio; Foi outro mano que sonhou com roupas caras, boas, um tênis importado; Ambição insignificante pro mundo, pra polícia motivo pra ser fuzilado; Um outro enterro onde se chora em dobro; A morte do fulano, aquela merda onde está o corpo; Sem flores um indigente irreconhecível que se vai; Sem valor, sem orgulho, só a dor da mãe e do pai; Infelizmente é a morte, padrão dos pobres; Anoiteceu bum, de qualquer meio do mato; Qualquer quebrada o sangue escorre; Quantos de nós sentiremos o inferno na pele; Um corpo com jornal, indigente no iml; Uma sepultura abandonada; Que nunca recebeu sequer uma flor; Que nunca recebeu uma visita; Um oração, um gesto de amor; Quando não se sonha paz se torna impossível; Viver no nosso mundo é foda, é suicídio; Um outro homicídio em questão de horas; Uma tático que passa é outra mãe que chora; Das profundezas do inferno quero sonhar com a paz; Esquecer toda essa porra de polícia, homicídio, droga; Fechar os olhos e sonhar com o céu; Fechar os olhos e esquecer que a esperança já está morta; Sonhei com o céu. (2x) fechei os olhos e sonhei com o céu; Do inferno eu vi a paz; O sangue lá não escorre pelo chão; Não existe cadáver, não se enterra caixão; Sonhei com o céu, sonhei com o céu; Sonhei com o céu.