Sonhei que eu era um samelo De couro liso e fivela dourada Com sola resistente em látex E o preço ainda preso num durex Pessoas que meu número servia Calçavam confortadas, satisfeitas Pessoas me pisavam agradecidas E eu até que me sentia útil Sonhei que eu estava numa caixa Numa caixa de sapatos De sapatos engraxados Mas não tinha nada de engraçado nisso Não sei se vergonha ou por ofício Corri para debaixo da cama Sapatos quando não estão em uso Se encontram em lugares obscuros A mãe estranhou minha demora E foi abrindo a porta do quarto Olhou resignada aquela cena Seu filho transformado em... sapatos! Nunca esquecerei aquele sonho que eu tive um dia Essa era agora minha nova vida, Esse era enfim o meu destino Tudo se ajustava passo a passo sem aperto Eu me adequava com efeito ao figurino Mas na minha consciência de sapato Uma coisa vagamente me dizia Que eu era gente, eu não era um samelo E acordei calçado em meu chinelo Sonhei que eu estava numa caixa Numa caixa de sapatos De sapatos engraxados Mas não tinha nada de engraçado nisso