Passa o passe pelo torniquete Espera que o portão abra assim que a hora chegue Para que o barco saia Ainda é de madrugada O ar frio corta-lhe a cara E no cais os sons metálicos são a banda sonora Um grito de gaivota Um puto chora com sono Enquanto a mãe tenta calá-lo Com um biberão de leite morno E ela lembra-se dos filhos Que ficaram sós em casa E dos filhos da patroa Pra cuidar na outra margem Já se vê Lisboa ao fundo Que amanhece sonolenta E o motor do barco reza numa lenga-lenga lenta Come bolacha Maria Ali sentada entre as mulheres E na revista Maria fica a par dos faits divers Mão gretada da lixívia Pele negra, cabelo curto Saudade de Cabo Verde Vontade de um mundo justo Porque é sempre mais difícil Pra ela que tem um útero escolher a solidão Entre um bêbado e um adúltero Entre o pó e a sanita Vai limpar também as lágrimas E vai rezar a Fátima Pra filha não estar grávida Ave, Maria, cheia de graça O Senhor é convosco Bendita sois vós entre as mulheres Este balanço do barco Lembra o mar de Santiago E ao largo do Barreiro Quase vê a ilha de Maio Quase sente o mesmo cheiro E vai crescendo o seu desejo De seguir no cacilheiro É ir até pedra badejo Até que vê a ponte Salazar ali ao lado esquerdo Ou 25 de Abril como agora é bom dizer E percebe que mesmo que façam pontes sobre o rio Ele é demasiado grande pra que consigam unir-nos E ali no meio do Tejo Debaixo do céu azul Deu conta que até Cristo Virou as costas ao sul Ali no meio das mulheres Do barco da madrugada Sente a fadiga da lida Da faxina e da faina pesada Sofre da dupla jornada Pra pôr comida na mesa Com força de matriarca Que arca com a despesa E entre toda aquela gente Ela é só mais uma preta Só mais uma imigrante Empregada da limpeza Só mais uma que de longe vê a imponência imperial Do tal Terreiro do Paço da Lisboa capital Mais uma que à chegada vai dispersar da manada Enquanto a cidade acorda Já elas estão na batalha há muito tempo Porque o metro, comboio, autocarro Podem-nos faltar à gente Mas não a gente ao trabalho São os outros cacilheiros Outras pontes do povo Porque a grande sobre o rio Mesmo se o estado é novo Tem nome de um grande herói da história colonial E ela é mais uma heroína que não interessa a Portugal Em comum só este barco o mesmo rio o mesmo mar E a mesma fé que esta vida foi feita pra navegar Em comum só este barco o mesmo rio o mesmo mar E a mesma fé que esta vida foi feita pra navegar Navegar é preciso viver não é preciso Navegar é preciso viver não é preciso Navegar é preciso viver não é preciso Navegar é preciso (navegar é preciso) viver não é preciso (viver não é preciso) Navegar é preciso (navegar é preciso) viver não é preciso (viver não é preciso) O barco Meu coração não aguenta Tanta tormenta