Amargô

Humano, Demasiadamente Humano

Amargô


Perdão nessa culpa
Minha construção
Me fez algo mas não eu
Algo mas não teu
Só vim dizer
Adeus

O seu pesar
O seu padrão
O seu pudor
É tudo seu
Seu capital
Nos decapitou
Não mais me importa

No entanto!
Nos deram paz, amor e compaixão
Uma alma e até proteção
Que envolvente
Abafadores das vozes da razão
Mas ainda sinto a frustração
No espelho um animal
Que questiona seus poros e seu ser
Como pode haver tal coisa
E ainda assim
Sobrevivermos produzindo o nosso fim

Mas quem sou eu?
Quem me moldou assim
Tão distante
Do essencial
Existencial?

Não ouviram falar daquele homem louco
Que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado
E pôs-se a gritar incessantemente
Procuro Deus! Procuro Deus!
E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus
Ele despertou com isso uma grande gargalhada
Então ele está perdido? Perguntou um deles
Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro
Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?
Gritavam e riam uns para os outros
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar
Para onde foi Deus? Gritou ele
Já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu
Somos todos seus assassinos!
Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?
Que fizemos nós ao desatar a terra do seu Sol?
Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós?
Para longe de todos os sóis?
Não caímos continuamente?
Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções?
Existem ainda em cima e embaixo?
Não vagamos como que através de um nada infinito?
Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio?
Não anoitece eternamente?
Não temos que acender lanternas de manhã?
Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus?
Não sentimos o cheiro da putrefação divina? 
Também os deuses apodrecem!
Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!
Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos?
O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro
Sob os nossos punhais
Quem nos limpará esse sangue?
Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios
Que jogos sagrados teremos de inventar?
A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós?
Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses
Para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve ato maior 
E quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato
A uma história mais elevada que toda a história até então!
Nesse momento silenciou o homem louco
E novamente olhou para seus ouvintes
Também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele
Eu venho cedo demais, disse então, não é ainda meu tempo
Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda
Não chegou ainda aos ouvidos dos homens
O corisco e o trovão precisam de tempo
A luz das estrelas precisa de tempo, os atos
Mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos
Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação
E no entanto eles cometeram!
Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas
E em cada uma entoou o seu réquiem aeternaum deo
Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder
O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?